domingo, 5 de abril de 2009

Odisséia ou A hora do perrengue

Saí de Mysore por volta de meia noite, em um carro com motorista (sairia mais em conta do que pegar um trem para Bangalore e ficar em um hotel até a hora do voo para Delhi). Contradizendo quase tudo o que me dissera da Índia, o motorista chegou até mais cedo do que o combinado. Da viagem não posso dizer que foi tranquila, porque para andar de carro em qualquer estrada da Índia é preciso ter fé. É focar na divindade que está no painel (sempre tem alguma) e entregar mesmo. Enfim, correu tudo bem, cheguei no aeroporto e fui de avião para a capital, Delhi. Sabia que o Norte seria mais confuso, é a parte mais caótica da Índia. Uma das dicas que me deram para andar de trem foi de sempre pedir assentos que ficassem no alto, em caso de viagens longas, para poder dormir tranquila. Fiz uma confusão enorme na agência em Mysore para trocar a tal passagem, que me deram de segunda classe. O destino era Varanasi, cidade de Shiva.

Chegando em Delhi, aquela confusão normal de Índia, eu com meus dois mochilões e mais uma mala enooooorme que comprei em Mysore (um mês numa cidade batendo perna de um lado para o outro, já viu né?!). Logo um homem começou a falar comigo que era agente de viagens e que podia fazer um pacote para mim e tal. Não dei muita bola, mas quando fui pegar minha passagem de trem e ver como era o tal trem que pegaria, desanimei. Era uma muvuca onde mal tinha espaço para sentar. O cara ainda insistindo ficou me perguntando: "como é que você vai aí, com as malas na cabeça?".

Eu, muito desconfiada, aceitei ir até a tal da agência. Minha intuição dizia que não ia sair boa coisa, mas fui assim mesmo. Lá me ofereceram um chai, dei só um golinho (paranóia máxima de terem colocado alguma coisa no chai). Eles me empurraram um pacote para conhecer Agra. Eu não queria, não fazia a mínima questão de ver o Taj Mahal, mas eles falaram tanto que eu acabei aceitando. Entrei em um carro, o motorista não falava inglês. Foram umas quatro horas de viagem, até que finalmente cheguei a Agra.

Totalmente diferente da paisagem do sul, a cidade é basicamente mulçulmana. Cheguei no hotel, tomei um banho e fui conhecer o Taj Mahal. Tinha um guia local para me levar lá. O ambiente geral é bem hostil e confuso. Não é permitido chegar perto de carro, fui a cavalo mesmo. Para indianos o ingresso era de 20 rúpias, para estrangeiros 720. Já não fazia questão, prefiri ir atrás do palácio, pegar um barquinho até o outro lado e ter uma vista que ninguém lá dentro teria: o Taj refletido no rio. Tirei umas fotos, conversei com o guia. Em algum momento ele fala de seu "mestre", que era hindu, que ele não ligava para isso. Eu pergunto qual era a sua religião e ele responde: "muslim". Ele então me diz que seu mestre ficava do outro lado do rio e que eu poderia conhece-lo se quisesse. Aceitei. Voltamos no barquinho e caminhamos um pouco para umas casas do lado do Taj Mahal, pela parte de trás do mausoléu. Estava anoitecendo e eu estava um pouco cabreira, mas resolvi ir mesmo assim.

Chegamos na casa. Fui até o altar, o baba (senhor) estava lá, me deu prasada (comida abençoda - no caso eram umas balinhas), me falou um pouco sobre a divindade, que eu olhasse nos olhos delas e pedisse o que quisesse que iria realizar. Depois disso o senhor levantou e foi embora e eu fiquei um pouco mais sentada ali. O guia começa a falar de novo e de repente põe as mãos nos meus ombros, como se fosse fazer uma massagem. Fico com muito medo, percebo que suas mãos tremem muito. Pergunto o que ele está fazendo e ele diz que é para me libertar. Levanto sem pensar nem olhar para trás e saio correndo. Tudo escuro, ando sem olhar para trás, chorando. Parece bobagem, mas nem indiano e muito menos mulçulmanos tem costume de tocar nenhuma mulher, nem as esposas são tocadas em público. Me senti abusada, péssima, sozinha, com muito medo e raiva.

Voltei para o hotel, chorei, tomei banho e comi o resto de granola que eu tinha levado do Brasil e que me servia de consolo para matar as saudades. Sentia muita raiva de tudo e de todos ali. E ainda tinha que brigar na agência de lá porque eles não queriam me dar a passagem de trem para Varanasi, que estava no pacote que comprei em Delhi. Mulher e sozinha, não pode fazer cara de coitatinha, tive que voltar lá umas três vezes, brigando sempre e aturando a cara deles de deboche para sair de lá com a minha passagem.

Consegui pegar minha passagem de trem, marcada para as 21hs. Ao meio dia, minha estadia expirou e tive que sair. Peguei um taxi até a estação. Cheguei lá e fui para a sala de espera das mulheres (é separado dos homens). O lugar é horrível, escuro, bem sujo, nunca vi tanto pombo na minha vida. Sento na sala, prendo minha mala grande com uma corrente ao banco e deito no banco com a cabeça nos mochilões. Sempre que preciso ir ao banheiro, levo as mochilas comigo. A pochete onde fica o passaporte, passagem e dinheiro então, não desgrudo do corpo nunca, até na hora de tomar banho penduro em um lugar que eu possa ver.

O tempo vai passando, pessoas chegam e vão embora e eu fico ali, ouvindo música, escrevendo, observando um ratinho que tenta subir pela parede e cai toda hora. O trem chega. O funcionário me coloca numa cama embaixo e eu peço para ficar na de cima para dormir melhor. (seguindo as recomendações). Tinha um motivo para ele me colocar ali, mas eu nunca iria adivinhar. Estava previsto chegar em Varanasi por volta das 9 da manhã. Acordo cedo, o trem está parando na estação. Abro a cortina e pergunto para uns indianos que se preparam para descer se já chegamos em Varanasi. Eles me olham com uma cara de assustados e falam: "Varanasi já passou, estamos em Patna". Puta merda, pensei, peguei o trem errado, era só o que me faltava!!! Desci do trem com minhas tralhas e fui me informar melhor. Na estação, sempre junta uns curiosos em volta, ainda mais sendo mulher, sozinha e com cara de perdida. Nunca é fácil pegar informação, tudo é bem confuso e normalmente tem que subir uma escadaria para resolver. Lá vou eu com meu malão, meus dois mochilões e minha mochila de ataque para o segundo andar. Nem sei como consegui subir com aquilo tudo. Acho que em situações limite, a gente fica mais bicho do que gente, não sentia fome, nem sede ou sono ou cansaço. Só queria resolver tudo e sair dali.

O segundo andar tinha 30 guichês. Em cada fila que eu entrava o funcionário me mandava para outra fila, quando não diziam simplesmente que não havia passagem para Varanasi. Resolvi me acalmar um pouco, sentei numa cadeira para aliviar um pouco o peso nas costas e fiquei pensando um pouco. Lembrei das aulas da Gloria, em que ela contou que quando você quer alguma coisa, para tentar somente três vezes, e se não der certo, reveja seus passos ou dê um tempo porque as coisas tem um tempo próprio para acontecer. Nesse momento pensei: "Eu sou devota de Shiva e quero ir para a cidade dele. Já tentei quando cheguei em Delhi e acabei em Agra que foi horrível, de Agra passei direto e vim parar quase em Calcutá. Agora é a terceira vez, se não der certo, eu vou direto para Rishkesh, nem que seja no lombo de um burro! Vou relaxar porque me aborrecer agora não vai ajudar muito". E levantei para enfrentar os guichês novamente.

Quem deveria me vender estava no número 4 com muita má vontade e me mandando para o número 27. Fui até lá e pedi ajuda porque precisava ir para Varanasi mas ninguém queria me vender a passagem. O cara no 27 foi então até o guichê 4 dar um esporro no outro cara para ele me vender a tal passagem. Ufa! Consegui!!! A hora do trem era 16hs, o relógio marcava meio dia. Mas para quem já estava no perrengue desde Delhi, esperar mais umas horas era moleza. Me dei conta de que chegaria em Varanasi as 11 da noite, tudo o que me foi alertado para NÃO fazer. Mas naquela altura do campeonato eu já tinha entregue mesmo para os Deuses.

O que mais me angustiava é não ter como me comunicar. Nenhum telefone funcionava, e eu estava há uns quatro dias sem dar notícias, na pior parte da viagem, sem poder nem desabafar com ninguém. Me certifiquei sobre qual e onde era a plataforma em que pegaria o trem. Aprendi que indiano não sabe dizer que não sabe, se você pergunta algo ele responde qualquer coisa. Por isso passei a perguntar para pelo menos cinco pessoas diferentes... uma senhora me viu nesse estado paranóico e me perguntou o que eu queria. Falei o que tinha acontecido e ela foi um amor (como a maioria dos indianos), falou para ficar com a família dela, me deu uns biscoitos e quando chegou a hora me colocou no trem certo.

No trem eu me acomodei e em cada parada eu perguntava: "Varanasi?". O cara que recolhe os bilhetes já não devia estar mais me aguentando, mas é importante ficar atento, o trem para muito rápido nas estações, as vezes nem cinco minutos, e eu estava sozinha com muita bagagem. Desci em Varanasi as 11 da noite. Outra recomendação era de não pegar rickshaw com qualquer um, muito menos com aqueles que te abordam na plataforma, dentro da estação. Eu estava há quase três dias, sem comer direito, dormindo em trens, sem tomar banho direito, não tinha nem o que pensar. O primeiro que chegou para mim e perguntou "rickshaw?"eu aceitei.

Já sabia que eles (eram dois) iriam me levar para algum hotel que dá porcentagem para eles. Falei o nome do hotel que eu queria e eles me deixaram na entrada de um beco. Peraí que eu sou doida mas não sou idiota! Falei então para eles me levarem para algum hotel que fosse barato, pois estava disposta a pagar até 200 rúpias de diária ( pouco mais de 10 reais). Me deixaram então na porta de um hotel, simples, mas simpático, sem elevador (coitado do cara que teve que carregar minhas tralhas). Todos eram simpáticos e solícitos, a cozinha já estava fechada, mas fizeram um lassi (yogurte batido com banana) para mim.

No quarto tomei banho, tomei o lassi, escrevi no diário de viagem o que tinha acontecido. No banheiro tinha um lagartão enorme que tive que vigiar enquanto tomava banho. Fui carregar as pilhas do cd player e deu um curto, faltou luz. Bom, já era hora mesmo de dormir.

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